Poucas coisas mudaram no mundo nos últimos 100 mil anos. Naquela época, os
primeiros seres humanos modernos surgiam na África e começavam a se espalhar por
outros continentes. Eles eram praticamente idênticos aos mais de 6 bilhões de
pessoas que habitam hoje o planeta. De lá para cá, os únicos retoques que a
nossa espécie sofreu foram pequenas adaptações aos diferentes ambientes mudanças
exteriores para lidar melhor com lugares mais frios, secos ou com ventos mais
fortes. O lado triste dessa incrível capacidade de adaptação é que as diferenças
físicas foram usadas para avaliar pessoas à primeira vista e atribuir-lhes
qualidades e defeitos. Milhões foram escravizados, mortos ou discriminados por
causa da aparência física.
Por que só agora os cientistas começam a entender as diferenças entre os
seres humanos? Tanta demora para tratar do assunto tem um motivo: as primeiras
tentativas científicas de analisar as raças humanas levaram quase sempre à
conclusão de que algumas eram mais inteligentes e criativas ou seja, superiores
às outras. O resultado foram as tentativas de criar uma raça pura e as
ideologias que levaram a genocídios. As tragédias geradas por essas teorias
fizeram a ciência aceitar que as raças não tinham nada de biológico e que eram
apenas um produto da sociedade. O que vemos agora é a tendência de volta à
biologia, diz o antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São
Paulo (USP).
Os cientistas estão confiantes que dessa vez o resultado será diferente.
Estudar as diferenças humanas é perigoso porque sempre existirão pessoas que
distorcerão os estudos, mas acredito que os cientistas e o público amadureceram
o suficiente para seguirmos com as pesquisas, diz a antropóloga Nina Joblonski,
da Academia de Ciências da Califórnia, Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, as ciências humanas avaliam como o racismo é difundido e
prejudicial. Nesse ponto, o Brasil está entre os piores países do mundo. O
problema é complexo, mas podemos amenizá-lo. Só que, antes, é preciso saber como
tudo começou.
Como nos tornamos diferentes?
Ao contrário dos chimpanzés e demais primatas, o homem não possui cabelo por
todo o corpo. A adaptação provavelmente surgiu por volta de 1,6 milhão de anos
atrás para esfriar o corpo de alguns dos nossos primeiros ancestrais, que
começavam a se tornar mais ativos e fazer longas caminhadas. Uma mudança levou a
outra: células que produziam melanina, antes restritas a algumas partes
descobertas, se espalharam por toda a epiderme. Além de tornar a pele escura, a
melanina absorve os raios ultravioleta do Sol e faz com que percam energia. Os
cientistas acreditavam que esse traço havia evoluído para evitar cânceres de
pele, mas a teoria esbarrava no fato de que esse mal costuma surgir em idade
avançada, depois que as pessoas já tiveram filhos, e portanto dificilmente
alteraria a evolução. Até que, em 1991, Nina Joblonski encontrou estudos que
mostravam que pessoas de pele clara expostas à forte luz solar tinham níveis
muito baixos de folato.
A deficiência dessa substância em mulheres grávidas pode levar a graves
problemas de coluna em seus filhos. Além disso, o folato é essencial em
atividades que envolvam a proliferação rápida de células, como a produção de
espermatozóides. Nos ambientes próximos à linha do Equador, a pele negra era uma
boa forma de manter o nível de folato no corpo, diz a antropóloga.
Enquanto os humanos modernos estavam restritos à África, a melanina
funcionava bem para todos. Eles eram um grupo bastante homogêneo, porque, por
motivos desconhecidos, os primeiros humanos estiveram perto da extinção há cerca
de 200 mil anos, com talvez não mais de 20 mil pessoas. Posteriormente, a
descoberta de novas ferramentas e o crescimento da população tornou a África
pequena demais para eles e, cerca de 100 mil anos atrás, os homens modernos
chegaram à Ásia. De lá se espalharam para a Oceania, depois para a Europa e, há
pelo menos 15 mil anos, à América.
Nas regiões menos ensolaradas, a pele negra começou a bloquear demais os
raios ultravioleta. Esse tipo de radiação é nocivo em quase todos os aspectos,
mas tem um papel essencial no organismo: iniciar a formação na pele de vitamina
D, necessária para o desenvolvimento do esqueleto e a manutenção do sistema
imunológico. A tendência então foi que populações que migraram para regiões
menos ensolaradas desenvolvessem pele mais clara para aumentar a absorção de
raios ultravioleta. Em regiões intermediárias, o truque evolutivo foi o
bronzeamento uma camada temporária de melanina para proteger o folato em épocas
de sol e produzir vitamina D quando ele não fosse tão forte. Ou seja, de acordo
com os novos estudos, a cor da pele é apenas uma forma de regular
nutrientes.
Adaptações ao clima afetam primordialmente características superficiais. A
interface entre o interior e o exterior têm papel fundamental na troca de calor
de dentro para fora, e vice-versa, afirma o geneticista italiano Luigi Luca
Cavalli-Sforza, um dos pioneiros no estudo de genética de populações, em seu
livro Genes, Povos e Línguas. Ao se espalhar pelo mundo, os seres humanos
tiveram que lidar com todo tipo de ambiente e o principal elemento a se adaptar
aos extremos de temperatura, umidade, iluminação e ventos do planeta foi a
aparência. Um exemplo é o tamanho do corpo: em regiões quentes é vantajoso ser
baixo como os pigmeus ou alongado como os quenianos, com a superfície do corpo
grande quando comparada ao volume, o que facilita a evaporação do suor. O cabelo
encarapinhado ajuda a reter o suor no couro cabeludo e a resfriá-lo. O oposto
ocorre em regiões frias como a Sibéria.
O corpo e a cabeça dos mongóis, que se desenvolveram por lá, tendem a ser
arredondados para guardar calor, o nariz, pequeno para não congelar, com narinas
estreitas para aquecer o ar que chega aos pulmões, e os olhos, alongados e
protegidos do vento por dobras de pele.
A origem de muitas características, no entanto, permanece desconhecida.
Muitas delas podem ter surgido por serem consideradas belas ou simplesmente por
acaso. Populações de nativos da América, por exemplo, devem ter passado por
momentos em que se reduziram a algumas dezenas de indivíduos, o que eliminaria
os traços menos comuns, como alguns tipos sangüíneos. Há também a influência da
cultura: algumas mudanças podem não ter ocorrido porque os homens já tinham
meios de se proteger do ambiente. Ainda não sabemos se a maioria dos traços foi
fruto da adaptação ou da sorte, mas é provável que os estudos do genoma humano
expliquem muitos deles nos próximos dez anos, diz a antropóloga Nina Joblonski.
As modificações, no entanto, não foram muito além da aparência, graças à
homogeneidade da população humana em seus primórdios e ao pouco tempo que ela
teve para evoluir desde então (cerca de 7 500 gerações). Os poucos traços que
mudaram também não estão ligados entre si, o que permitiu que uma mesma pessoa
tenha características de diferentes etnias e criou um contínuo de cores entre as
populações. Entretanto, a visão é o sentido mais apurado do ser humano e o fato
de essas diferenças estarem na aparência levou muitos a considerá-las
profundas.
Existem raças humanas?
Em 1758, o botânico sueco Carolus Linnaeus o criador do atual sistema de
classificação dos seres vivos deu à humanidade o nome científico de Homo sapiens
e a dividiu em quatro subespécies: os vermelhos americanos, geniosos,
despreocupados e livres; os amarelos asiáticos, severos e ambiciosos; os negros
africanos, ardilosos e irrefletidos, e os brancos europeus, evidentemente,
ativos, inteligentes e engenhosos. Estava aberta a discussão sobre a existência
de raças humanas e o valor de cada uma. No entanto, essas características nunca
foram comprovadas e a principal conseqüência desse tipo de idéia foram as
câmaras de gás nazistas, o que levou os cientistas do século 20 a acreditar que
todas as diferenças entre humanos estavam na cultura. A idéia de que as raças
humanas não existem biologicamente foi reforçada nos anos 70, quando pesquisas
analisaram as diferenças entre as proteínas de diversas populações.
Os seres humanos estavam muito longe de apresentar uma diversidade comparável
à de espécies que de fato possuem raças, como elefantes ou ursos. Na verdade, a
diferença genética entre dois chimpanzés de uma mesma colina na África pode ser
maior que o dobro da existente entre os 6 bilhões de humanos do planeta.
Faltava apenas uma medida precisa da grande semelhança existente entre nós, e
ela finalmente apareceu em dezembro do ano passado. Uma equipe de sete
pesquisadores dos Estados Unidos, França e Rússia comparou 377 partes do DNA de
1 056 pessoas de 52 populações de todos os continentes. O placar final: entre
93% e 95% da diferença genética entre os humanos é encontrada nos indivíduos de
um mesmo grupo e a diversidade entre as populações é responsável por 3% a 5%. Ou
seja, dependendo do caso, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com
o de um norueguês do que com alguém de sua cidade. O estudo também mostrou que
não existem genes exclusivos de uma população, nem grupos em que todos os
membros tenham a mesma variação genética. A diversidade entre as populações está
nas diferentes freqüências de traços que são encontrados em todo lugar, diz o
biólogo Noah Rosemberg, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, um
dos autores do trabalho.
O estudo, entretanto, levantou um aspecto polêmico: há, de fato, uma relação
entre o grupo de origem de uma pessoa e seu genoma. Em outras palavras, a
ancestralidade declarada por alguém reflete uma diferença genética, mesmo que,
como dissemos há pouco, essa diversidade seja de apenas 3% a 5% da que existe
entre os humanos. Existem claramente diferenças entre populações que são
visíveis no genoma. Algumas pessoas podem chamar isso de raça, outras não, mas o
fato é que a diversidade existe, apesar de representar uma fração bem pequena da
nossa constituição genética, diz Rosemberg.
A questão já era muito discutida pelos médicos. Para alguns, mesmo que as
raças não existam, a etnia de uma pessoa pode fornecer pistas que facilitem o
diagnóstico de doenças. Outros acham que usar raças na medicina não só é inútil
como perigoso. A polêmica ganhou força com a publicação no ano passado de uma
pesquisa que afirmava que o enalapril, um remédio para problemas cardíacos
crônicos, funcionava menos em negros que em brancos.
Existem de fato doenças mais comuns em algumas etnias. Um exemplo é a
hemocromatose, uma desordem na metabolização de ferro, que ocorre em 7,5% dos
suecos mas é quase inexistente em chineses ou indianos. Os negros americanos
também sofrem mais de doenças cardiovasculares, mas o motivo ainda é
desconhecido: pode ser um traço hereditário ou o resultado de mais tensões e
menos acesso a serviços de saúde. Qualquer que seja a explicação, não podemos
generalizar os resultados. Cada país tem uma composição genética diferente, que
varia de acordo com a história e a interação entre os grupos que para lá
migraram, afirma o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
Mesmo que a raça seja um recurso útil para prever o risco de doenças, muitos
médicos acreditam que seria melhor abandoná-la em prol de uma análise mais
rigorosa da ascendência. Não se sabe ao certo se usar raças na medicina é melhor
do que não usar nenhuma informação sobre ancestralidade. Nós preferimos usar
classificações mais específicas, que chamamos de populações, diz Rosemberg. A
única semelhança, por exemplo, entre os negros do Sri Lanka, da Nigéria e do
norte da Austrália é a cor da pele. A categoria ainda teria a vantagem de lidar
melhor com sociedades mais miscigenadas. Se você permitir que as pessoas
declarem múltiplas ancestralidades, terá boas chances de determinar as
diferenças genéticas, afirma Rosemberg.
As novas técnicas de análise genética, no entanto, abrem a possibilidade de
se abandonarem de vez as classificações raciais em prol de critérios mais
precisos. Nós precisamos simplesmente olhar todos os humanos como um enorme
conjunto de genes e ver se conseguimos achar alguns grupos, que provavelmente
não corresponderão à divisão clássica de raças, diz Nina Joblonski. O
geneticista David Goldstein, da University College, em Londres, Inglaterra,
estudou a resposta a remédios em seis grupos étnicos clássicos. O resultado foi
melhor quando, em vez de considerar as populações, ele reagrupou os indivíduos
de acordo com semelhanças genéticas. Como os seres humanos são muito parecidos,
um remédio que funcione para uma população sempre encontrará pessoas em outros
grupos que também podem se beneficiar dele. No final, para cada característica
poderíamos ter um novo agrupamento.
Assim como a Terra pode ser descrita por muitos tipos de mapa do topológico
ao econômico é possível dividir as variações genéticas de infinitas maneiras e
ressaltar qualquer similaridade ou diferença desejada. Se sobrepusermos todos os
mapas, cada pessoa será única.
Qualquer que seja a conclusão a que os médicos e biólogos cheguem, as raças
vão continuar existindo para quem estuda as ciências humanas. Os brasileiros
acreditam em raças e agem de acordo com elas. Então elas existem, afirma o
sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, da USP. Elas são uma categoria de
exclusão e dominação que traz problemas na realidade. Mesmo que não existam
biologicamente, elas criam vítimas, diz o antropólogo Kabengele Munanga, também
da USP. Ou seja, ao menos na cabeça das pessoas, as raças são bem reais.
Qual a origem do racismo?
Muitos cientistas acreditam que o etnocentrismo seja universal. Os mitos de
origem de alguns nativos brasileiros trazem bons exemplos. Os índios urubus, que
habitam o vale do Pindaré, no Maranhão, acreditavam que todos os homens vieram
da madeira, só que eles vieram das boas, enquanto seus vizinhos se originaram
das podres. Não existe nenhum relato de sociedades tribais que não tenha
etnocentrismo, diz João Baptista Borges Pereira, da USP. O motivo é simples:
esse tipo de idéia reforça os laços entre os grupos, estabelece fronteiras entre
eles e os outros e, de quebra, levanta o moral das pessoas. Na década de 50, por
exemplo, um índio kadiweu tribo famosa por não mostrar admiração por qualquer
coisa que não fosse de seu grupo foi levado ao topo da sede do Banespa, um dos
edifícios mais altos de São Paulo e com uma arquitetura ousada para a época. A
reação foi: É apenas uma casa em cima da outra. Quem faz uma, faz 100.
A característica é tão disseminada que levou psicólogos a pensar que as
pessoas são programadas para discriminar grupos. Um experimento feito por três
psicólogos evolutivos da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, mostrou a
alguns participantes fotos de brancos e negros junto com partes de diálogo e
frases desconexas. Quando pediu que identificassem o autor das frases, metade
dos participantes utilizou a raça para fazer seu julgamento. A idéia é que o
racismo seria uma tendência do ser humano de formar grupos de alianças com
qualquer pista que ele tiver, como cor da pele, roupa ou sotaque. A boa notícia
é que o preconceito pode ser facilmente dissolvido ou substituído por outro.
Quando os negros e brancos que apareciam nas fotos recebiam camisetas de cores
diferentes, as cobaias praticamente deixavam de classificá-los pela raça.
O preconceito é tão antigo quanto a humanidade, mas o racismo parece não ter
mais de 500 anos. Antes disso, a discriminação era feita em relação à cultura e
ao diferente, diz o antropólogo Kabengele Munanga. Os gregos chamavam de bárbaro
qualquer pessoa que não falasse sua língua, mas quem a aprendesse não teria
complicações. O problema começa a mudar no final do século 15, quando a
Inquisição espanhola obriga os judeus a se converterem ao catolicismo. Muitos
desses cristãos-novos continuam a praticar os seus ritos, o que leva os
católicos a acreditar que havia algo no sangue judeu que impedia a conversão. A
solução era evitar a miscigenação para que esse sangue não se espalhasse pela
população. Na mesma época, os europeus chegam à África e à América e encontram
um tipo de ser humano completamente diferente do que eles conheciam. Até então,
a humanidade era a Europa. O conceito de branco não existia antes de eles
conhecerem o negro, diz Kabengele.
O encontro trouxe novos dilemas. Os teólogos da época discutiam se os índios
tinham alma com o objetivo de saber, por exemplo, se ter relações sexuais com
eles era pecado. Eles também chegaram à conclusão de que escravizar africanos
era natural, com base na passagem bíblica em que Canaã, filho de Noé,
embriaga-se e é condenado à servidão (Gênesis 9,25).
A partir do século 18 e principalmente no século 19, as explicações bíblicas
dão lugar a argumentos científicos. Os pesquisadores associavam os traços
físicos de cada raça a atributos morais para tentar eliminar características
indesejáveis. Um deles foi o conde francês Joseph Arthur de Gobineau, que em
1855 concluiu que a miscigenação causa a decadência dos povos e que os alemães
eram uma raça superior às outras. Um de seus discípulos foi o médico brasileiro
Raimundo Nina Rodrigues, para quem os rituais de candomblé eram uma patologia
dos negros.
Apesar de essas teorias terem caído em total descrédito no século 20, o tipo
de discriminação que elas pregam permanece vivo em muitas pessoas. É uma
ideologia que se reproduz facilmente e que está sempre ligada à dominação de um
grupo sobre o outro, diz Kabengele. Ou seja, além de qualquer aspecto
psicológico, o racismo tem motivos bastante práticos. Ele é um sistema de levar
vantagens sobre outras pessoas e manter privilégios, afirma a psicóloga Maria
Aparecida Silva Bento, coordenadora do Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades (Ceert).
O Brasil é racista?
Muito, mas demoramos para perceber. Durante bastante tempo, acreditou-se que
o Brasil era uma democracia racial. Cronistas do século 19 chegaram a dizer que
a escravidão por aqui era mais branda do que o trabalho assalariado na
Inglaterra. Da mesma forma, o índio brasileiro não teria sido conquistado nem
derrotado, mas sim incorporado à nação. A idéia ganhou força nos anos 30,
inspirada pela obra do sociólogo Gilberto Freyre, para quem não havia no Brasil
distinções rígidas entre brancos e negros e a discriminação era social, feita
aos pobres.
O mito começou a cair a partir do final da década de 60, quando se descobriu
que o Brasil não só tinha preconceito em relação aos pobres o que em si já é
terrível como a discriminação era especialmente dirigida a negros, pardos e
índios. Os dados sociais mais recentes mostram a força das diferenças raciais no
Brasil (leia tabela). Mesmo quando se comparam pessoas da mesma região, sexo,
idade e educação, os negros têm desvantagens no mercado de trabalho, diz a
socióloga Luciana Jaccoud, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
(IPEA). Ela é uma das autoras de um estudo publicado no ano passado que mostra a
extensão dessas diferenças. Mesmo quando existem dados favoráveis, como o
aumento do nível de ensino na população brasileira, a distância entre negros e
brancos permanece constante. Essas pesquisas ajudaram a derrubar um outro mito:
o de que a pobreza dos negros é apenas um resquício da época de escravidão.
É verdade que o passado de servidão colocou a maioria dos negros em uma
classe social baixa, mas desde então já houve tempo para que a diferença
diminuísse. Isso não acontece porque os negros não têm as mesmas oportunidades
que os brancos.
Se o racismo é tão forte, por que a imagem de que éramos um paraíso racial
durou tanto tempo? Existem vários motivos. O primeiro deles é que no Brasil a
mestiçagem foi muito intensa. O colonizador português não era avesso à
miscigenação, o que ajudou a criar aqui um grau de mistura gênica inusitado em
qualquer população do mundo, afirma o geneticista Sérgio Pena, da UFMG. Em um
estudo publicado no ano passado, Sérgio mostrou que, por baixo da pele, as
características do brasileiro são muito misturadas. Um branco do Sudeste ou do
Nordeste do país, por exemplo, possui em média 30% de genes com origem nos povos
da África. Já nos negros, o número de genes africanos é apenas um pouco maior:
55%. Na aparência, entretanto, as pessoas continuaram a parecer brancas e
negras, com traços como cabelo encarapinhado, nariz largo e pele escura sempre
andando juntos.
Enquanto os genes se misturavam, parece ter havido uma seleção para que a
aparência permanecesse igual. Isso significa que as pessoas no Brasil tendem a
escolher cônjuges da mesma cor que elas, afirma Sérgio. A discriminação não era
feita pela origem familiar, mas sim pela aparência (leia box). Mesmo em uma
família negra, os filhos de pele mais branca casaram com brancas e amenizaram a
discriminação. Ou seja, os genes africanos e indígenas tiveram ascensão social,
mas as pessoas de pele negra continuaram pobres.
A longevidade do mito da democracia racial também tem a ver com identidade
nacional. No início do século 20, o Brasil possuía várias colônias de
imigrantes, ligados mais às suas regiões de origem do que ao Brasil. Havia a
necessidade de unificar o país em uma mesma cultura e dar a ele uma origem e uma
tradição. Foi o que tentaram fazer o modernismo da Semana de 22 e a Revolução de
30, liderada por Getúlio Vargas. O Brasil começa a pensar em si mesmo como uma
civilização híbrida, miscigenada, capaz de absorver e abrasileirar as
manifestações culturais de diferentes povos que para aqui imigraram. A idéia era
que os brasileiros constituíam uma só raça, um povo mestiço, afirma Antonio
Sérgio, da USP. Na realidade, essa idéia de que somos um caldeirão de raças e
culturas em harmonia impediu que negros e índios denunciassem o racismo e
requisitassem melhores condições. Ou seja, a imagem do preto e do nativo tiveram
aceitação, mas as pessoas de pele negra continuaram pobres.
O resultado da crença de que não temos racismo foi, de acordo com muitos
cientistas, um dos piores tipos de racismo que se conhece. A forma mais
eficiente de reforçar o preconceito é achar que ele não existe, que é natural,
diz Luciana Jaccoud. O nosso problema não está em lutas sangrentas entre brancos
e negros, mas em detalhes do dia-a-dia. Sempre que vou ao restaurante com uma
amiga branca, o garçom entrega a conta para ela, afirma a psicóloga negra Maria
Aparecida, do Ceert. Está em todo lugar: o diagrama do corpo humano na aula de
anatomia é branco, as modelos nos outdoors, os diretores de empresas e os
políticos também são. Há uma cota implícita para branco em tudo. Até o Tarzan,
um herói africano, não é negro, diz Maria Aparecida. Ela afirma que, em
pesquisas, as pessoas respondem facilmente o que é ser preto ou pardo,
associando-os a termos como preconceito e dificuldades, mas gaguejam ao
responder o que é ser branco é ser normal ou não ter que pensar sobre isso.
Para piorar, o racismo muitas vezes se mistura à discriminação por origem ou
cultura, como a praticada contra nordestinos em cidades do Sul e Sudeste.
Uma das principais formas de difundir esse preconceito está nos meios de
comunicação, que não raro retratam os negros em posições inferiores. Esse quadro
recentemente começou a apresentar mudanças, não porque o negro foi mais
respeitado, mas pela chegada de programas e filmes estrangeiros em que atores
não-brancos são mais comuns. O negro no Brasil tem espaços sociais bem
definidos, afirma o antropólogo João Baptista. Um idéia bastante difundida é de
que são bons no futebol e na música. O mesmo espaço, no entanto, não é dado em
cargos de diretoria e outras posições de poder.
Qual é a solução?
Existem várias propostas. Para o antropólogo negro Paul Gilroy, da
Universidade de Yale, Estados Unidos, considerado um dos intelectuais de maior
destaque na atualidade, o conceito de raça deveria simplesmente ser abolido. Ele
afirma que esse termo é uma categoria falsa, criada com fins discriminatórios,
que não traz avanços nem faz sentido no mundo de hoje, em que a busca das
empresas por novos mercados até valoriza a identidade negra. A idéia causou
muita polêmica e talvez não se aplique à realidade brasileira, em que a cor da
pele ainda gera preconceito. Muitos acham que, enquanto o racismo não acabar,
não é possível abandonar a idéia de raça.
As principais propostas para vencer o preconceito estão agrupadas em uma
categoria chamada ações afirmativas. Essas políticas reconhecem que existem
grupos com menos oportunidades e, para que tenham as mesmas chances, oferecem a
eles alguns privilégios até que o problema se resolva. Já existem no Brasil
algumas leis afirmativas em relação a mulheres e a deficientes, mas as políticas
em relação a negros só agora dão seus primeiros passos. Auxiliar mulheres não
fere os interesses de ninguém. Elas são filhas, mães e irmãs de todo mundo. Já
os negros são uma competição de verdade, diz o sociólogo Antônio Sérgio.
Entre os exemplos de políticas afirmativas estão estabelecer metas para
aumentar a presença de negros em empresas ou em cargos de chefia, fixar um
número mínimo de atores não-brancos em comerciais e programas de televisão, dar
preferência a candidatos pretos e pardos em caso de empate em processos de
seleção, privilegiar firmas que tenham mais negros entre seus funcionários ou
registrar as terras remanescentes de quilombos.
O ponto mais polêmico está nas cotas em vestibulares. Os defensores afirmam
que elas funcionam: nos Estados Unidos, por exemplo, a classe média negra, que
era quase inexistente, aumentou consideravelmente por meio dessas políticas. Os
críticos, por sua vez, falam que a solução é melhorar o ensino médio e
fundamental gratuito e, de quebra, auxiliar a população de baixa renda. Essa
estratégia funciona, mas talvez demore. Estudos mostram que se por um milagre as
escolas públicas básicas se tornassem hoje tão boas quanto as particulares,
seriam precisos mais de 30 anos para resolver as desigualdades entre pretos e
brancos. Além disso, o ensino básico já foi bem melhor e não ajudou a população
negra, diz Kabengele.
Outra crítica é que a autodefinição é o único critério que existe para
definir pretos e pardos, o que em teoria permite a qualquer um se aproveitar dos
benefícios. É possível que ocorram fraudes, mas acredito que elas serão raras.
Seria até engraçado ver todos se dizerem negros, diz Maria Aparecida, do
Ceert.
As cotas, no entanto, estão longe de ser uma solução definitiva. Elas
resolvem apenas a inclusão do aluno na universidade, sem garantir que ele irá
para os cursos mais valorizados e que terá condições de se formar neles. Também
criam o estigma de que os alunos não-brancos são menos qualificados um motivo
que leva muitos universitários negros a se posicionarem contra as cotas. Por
fim, rompe com o princípio de seleção por mérito. Existem alternativas para
alguns dos problemas, como doar bolsas para que alunos negros tenham o mesmo
preparo dos brancos ou criar cursinhos voltados para eles.
As ações
afirmativas, no entanto, são apenas parte da solução. É preciso também punir as
manifestações de racismo, garantir que crimes cometidos por negros não sejam
julgados mais severamente nem que eles virem alvo de violência policial. Também
é importante incluir o negro em propagandas, livros didáticos e manifestações
artísticas. Para coordenar essas ações, o governo federal inaugurou no mês
passado a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial. Se as medidas
derem certo e pudermos ver pessoas de várias origens e cores em todos os espaços
do país, então poderemos dizer que vivemos uma democracia racial e, quem sabe,
esquecer definitivamente que raças humanas existem.
História em Branco e Preto
1492 - Novo mundo
As expedições pela América e África levam os europeus a conhecer povos
diferentes, que eles não hesitam em escravizar, criando um intenso comércio de
negros no Atlântico
1537 - Papa Paulo III
Para os exploradores do Novo Mundo que chegavam ao Brasil, os índios eram
seres desalmados, que poderiam ser usados para qualquer fim. Isso só mudou em
1537, quando o papa Paulo III editou uma bula afirmando que os índios
descobertos na América tinham alma
1695 - Zumbi
O líder do Quilombo dos Palmares, o principal esconderijo de escravos
foragidos, é morto por tropas de bandeirantes. É nomeado herói nacional em
1995
1758 - Carolus Linnaeus
Cria um sistema de classificação de todos os seres vivos, das bactérias aos
elefantes. Os humanos aparecem divididos em quatro raças, com a branca acima das
outras
1855 - Arthur Gobineau
Escreve o Ensaio Sobre a Desigualdade da Raça Humana, considerada a bíblia do
racismo moderno, onde defende que a miscigenação é a causa da decadência das
nações
1866 - Ku Klux Klan
Surge a Ku Klux Klan, um marco da intolerância racial nos EUA, que promovia
assassinatos e atos terroristas contra negros. Continua a existir até hoje
1868 - Philip Sheridan
General autor da frase índio bom é índio morto, que ilustra o genocídio de
milhões de índios promovido por desbravadores norte-americanos durante a marcha
para o oeste
1888 - Abolição da escravatura
A princesa Isabel assina a Lei Áurea, que põe fim ao regime escravista, já em
decadência com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e com o retorno dos soldados
negros da Guerra do Paraguai (1865-1870), que, vitoriosos, se recusam a voltar à
servidão
1899 - Cesare Lombroso
Criminologista italiano famoso por tentar relacionar certos traços físicos a
tendências criminosas. Fez discípulos em todo o mundo. No Brasil, seus
seguidores estudam os crânios de Lampião e de Antônio Conselheiro para explicar
suas atitudes
1934 - Adolph Hitler
O governante nazista comanda a morte de 6 milhões de judeus. O objetivo era
eliminá-los da Europa e abrir caminho para a criação de uma raça alemã superior
a todas as outras
1948 - Apartheid
A África do Sul cria um regime de segregação entre brancos e negros. Ruas,
bancos de praça e até os banheiros eram de uso exclusivo de cada grupo
1964 - Martin Luther King
O líder negro ganha o Prêmio Nobel da Paz e morre dias depois com um tiro no
rosto. Entre suas conquistas está a liberação do acesso a lugares públicos aos
negros
1965 - Malcom X
Morre assassinado o líder muçulmano americano que acreditava que os negros
eram superiores aos brancos e defendia a criação de um estado autônomo para
eles
1984 - Desmond Tutu
O primeiro arcebispo negro da história ganha o Prêmio Nobel da Paz.
Direcionou a igreja anglicana a tomar posição contra o apartheid na África do
Sul
1991 - Rodney King
Motorista negro espancado por policiais em Los Angeles, Estados Unidos. A
absolvição dos agressores gera protestos que levam à morte de mais de 50
pessoas
1994 - Nelson MandelaDepois de 28 anos de prisão, é
eleito o primeiro presidente negro da África do Sul. Tornou-se mundialmente
conhecido pela luta que travou contra o apartheid
Brasil dividido
Negros e Pardos
Porcentagem da população - 46%
Renda per capita média - 205 reais
Taxa de analfabetismo - 18%
Média de anos de estudo - 4,7
Status do emprego em relação ao dos pais
Ascendente - 43,9%
Igual - 42,6%
Descendente - 14,4%
Probabilidade de...
...Ser pobre - 48%
...Ser desempregado - 7%
...Não ter carteira assinada - 17%
...Ser empregador - 3%
Brancos
Porcentagem da população - 54%
Renda per capita média - 482 reais
Taxa de analfabetismo - 8%
Média de anos de estudo - 6,9
Status do emprego em relação ao dos pais
Ascendente - 52,5%
Igual - 33,1%
Descendente - 13,5%
Probabilidade de...
...Ser pobre - 22%
...Ser desempregado - 6%
...Não ter carteira assinada - 12%
...Ser empregador - 7%
Negros do Norte e do Sul
Assim como o nosso país, os Estados Unidos receberam escravos. Entretanto,
eles foram mais extremos: não só tiveram a Ku Klux Klan como tiveram Martin
Luther King. Afinal, o que há de diferente entre o nosso racismo e o deles? Os
brancos americanos são mais radicais: qualquer pessoa que tenha ao menos um
ancestral negro é negro. Mesmo que uma pessoa seja considerada branca, ela pode
ser reclassificada se descobrirem que tem um parente negro. Não existem pardos
para os americanos, afirma o antropólogo Kabengele Munanga, da USP. Já no
Brasil, o preconceito é baseado mais na cor da pele e em outros traços físicos.
Um clássico das nossas manifestações de racismo é o requisito de boa aparência
nas ofertas de emprego. Temos também uma enorme quantidade de classificações
raciais em uma pesquisa feita em 1963, os 100 habitantes de uma vila de
pescadores do Nordeste usaram 40 termos nas autodeclarações de cor.
Cada
estilo tem suas conseqüências. O racismo americano criou uma solidariedade entre
negros e pardos e, por ser mais evidente, exacerbou as lutas raciais. Um negro
que ascendesse socialmente assumia o compromisso com os membros de sua etnia.
Nas décadas de 50 e 60, esse conflito levou a ações que combatessem a
discriminação, em alguns casos com política de cotas. Já no Brasil, a diluição
da questão racial dificulta a união entre os não-brancos. É comum o negro que
ascende socialmente romper o contato com os outros de sua classe para se
preservar. Ele também se torna rigoroso com a família e com a moral para manter
a respeitabilidade, diz João Baptista Pereira, da USP. É um racismo pouco
assumido, que pressiona os negros e evita que eles se mobilizem. Martin Luther
King teria dificuldades muito maiores por aqui.
Para saber mais
NA LIVRARIA
Classes, Raças e Democracia, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Ed. 34, 2002
Genes, Povos e Línguas, Luigi Luca Cavalli-Sforza, Companhia das letras, 2003
Homo Brasilis, Sérgio D.J. Pena (org.), Funpec-RP, 2002
Psicologia Social do Racismo, Maria Aparecida Silva Bento (org.). Vozes, 2002
A História da Humanidade, Steve Olson, Campus, 2002
NA INTERNET
www.ipea.gov.br
www.ceert.org.br
www.palmares.gov.br